Vou fechar a tasca

É um divórcio esperado, depois da instalação deste silêncio bizantino. O meu coração baterá sempre em sincronia com os pais, as mães e os meninos que vivem nesta ilha, justo ao largo do continente normalidade, neste pedaço de terra quase completamente inexplorado e desprovido de regras aplicáveis a mais de duas pessoas em simultâneo.

À medida que o Gui foi crescendo, fui dando conta da enorme investigação, ainda desenvolvida no modo de atirador furtivo, disparando contra tudo quanto mexa, do incrível crescimento exponencial de diagnósticos de autismo um pouco por todo o mundo, do surgimento e desaparecimento de terapias, teorias, diagnósticos e prognósticos. Estou cansado e, como a vida não permite que se corte o meio do novelo para voltar a unir as pontas, isto é um ponto final.

Obrigado. Estiveram cá em tantos e tão maus momentos, como os verdadeiros amigos. Gostava de vos conhecer a cara e de vos abraçar, um a um, e de vos dizer esperança e aceitação. Desta distância crepuscular a minha voz não ressoa senão no abismo. Quero-vos amor.

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Deficiência e sexo

 

No Público vem esta notícia a propósito de um homem que reclama a legalização da prostituição para deficientes que, a priori, estão fora do circuito normal pelo qual as pessoas se conhecem, em primeiro, no modo dois beijinhos e em seguida, acaso haja química, vontade e tutti quanti, entre lençóis.
É uma notícia que me diz muito, porque na minha concepção da deficiência os limites devem ser descobertos e não impostos de cima para baixo. Ou seja, não sou eu que vou determinar que o meu filho não vai poder nunca estar com a uma mulher, porque não tenho direito a legislar sobre isso. Pelo contrário, se o desejo lhe advir, tenho o dever como pai de procurar a melhor das respostas ao problema e não ignorá-lo ou bani-lo.

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assim como que uma espécie de balanço

 

2012 foi um ano lixado, em muitos sentidos: perdeu-se poder de compra, o que restava da confiança dos portugueses nos políticos e, sobretudo, uma certa ingenuidade em relação ao cuidado e uso da coisa pública, e começou-se a discutir se esta se devia ou não manter pública, e tudo quanto tem que ver com um guarda-chuva de garantias a que já estávamos habituados, malgrado estas não serem, de todo, integralmente justas e integralmente difundidas. A verdade é que somos um país pequeno e temos garantias à nossa escala: o ordenado mínimo é o mais mínimo da Europa e tudo quanto é Hospital e Escola, salvo os pontuais casos de sucesso que confirmam os restantes, funciona a três pernas, quando funciona, e dá pouco ao contribuinte, quando é chamado a dar, para além de, na maior parte dos casos, o tratar como um ignorante despesista, porque ele próprio não sabe fazer um diagnóstico diferencial que distinga com radical certeza o ataque cardíaco dos gazes resultantes da comezaina das festas. Somos umas crianças, umas crianças ingratas.

Coisas boas que aconteceram: a sociedade civil espirrou e, mesmo que ainda em fase de compostura de identidade, foi o suficiente para que todo o corpo político português tremesse.

Coisas boas que aconteceram: o meu Gui está mais assertivo e ainda ontem lhe dei (prenda atrasada de Natal) um tablet, a ver se ele começa a esforçar-se mais para ter aquilo que quer (desenhos animados em abundância).

Coisas que me fizeram pensar: o atirador da última grande carnificina americana continua a ser descrito como portador de Asperger, sem que em muitos meios de comunicação se faça o necessário divórcio conceptual entre ser atirador e ser Asperger. Tenho receio que uma coisa destas perigue as iniciativas que são quotidianamente lançadas nos EUA e de que dependemos para obter melhores terapias, resultados de investigação e, last but not least, uma cura.

Coisas sobre as quais ainda penso: cada vez tenho menos tempo para escrever no blogue, ou quero distanciar-me do “Autismo”, o livro, a condição, porque estou cada vez mais pacificado em relação ao meu filho e à ligação que mantemos? Como preparo um lançamento para Maio, de uma obra que nada tem que ver com o autismo, não quererei com este desamor crónico afirmar a minha individualidade de escritor que transcende a produção de qualquer das suas obras, mesmo que estas, como no caso do “Autismo”, lhe tenham saído da pele?

Coisas engraçadas: tenho falado com muitos pais de autistas, graças ao blog, graças ao livro e todos, para além das óbvias diferenças que mantêm, advindas da personalidade e cultura de cada um, estão em fases diversas e distintas no que concerne o “namoro” com o autismo. Há os que já aceitaram e até acham que a reconfiguração de vida foi positiva e outros que estão muito, muito zangados. Eu cada vez estou menos zangado, sem por isso dizer que aceito positivamente o autismo, longe disso. Mas desejo a todos, para este 2013, que alguma da zanga passe.

 

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outra vez os médicos

 

Ser pai do Gui conferiu-me – para além de uma profusa refundação do panorama capilar, por via do aparecimento contínuo e generoso de grandes tufos brancos de cabelo onde, outrora, vicejava uma floresta cerrada (cada vez menos cerrada, cada vez menos floresta) negra como as noites sem lua – uma especialidade pragmática: a de detectar e avaliar, em pouco tempo, diferentes PEA’s em diferentes miúdos que, aos olhos destreinados de outrem são, simplesmente, “esquisitos”, “tardios de desenvolvimento” ou “mimados”. Como o diagnóstico, na sua enorme maioria, tem uma base unicamente comportamental, tenho sempre hipótese de estar certo. Os prognósticos, regra geral, reservo-os para mim e não tenho dúvida que a maior parte das luminárias médicas da nossa praça, quando falam de autismo, deviam fazer o mesmo, usando para tal as suas variações preferidas da modesta fórmula: vamos fazer o nosso melhor para potenciar-lhe as capacidades até ao limite daquilo que ele pode dar, ao invés de: vai correr tudo bem, com muito trabalho esse miúdo aos seis anos já fala, escreve, e em nada se distancia dos seus colegas de turma normais. Lamentavelmente, numa sociedade em que o médico alavanca o seu poder na recusa em dialogar tu-cá tu-lá com aqueles que lhe pagam os honorários, escudando-se num mistério medieval e tornando opaca a sua prática pela utilização abusiva de um paternalismo que diminui o seu interlocutor pela inserção contínua de jargão técnico que, não servindo para explicar nada, antes reforça o poder do médico de intervir sobre o presente para modificar o futuro, é quase impossível pedir a sua excelência a lista de premissas que o levou a tomar aquela conclusão como corolário de um processo de pensamento, sob pena de cada pergunta feita ser respondida como se fosse um ataque à autoridade do clínico. Resta o bardamerda e o passar bem, e a recusa em pagar honorários a bestas. Talvez o futuro, não trazendo a cura para o autismo, nos traga pelo menos uma geração de pessoas que não acreditam estar entre o céu e a terra, exercendo, para bem alheio e glorificação pessoal, uma arte mágica que deve ser posta a salvo da populaça. Gente com quem falar. É disso que precisamos.

 

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olha, até eu tinha saudades de me ler

 

Há muito tempo que não actualizo a tasca. Mudei de casa há um mês e qualquer coisa e, se tenho andado a tentar que caiba na Betesga nova o Rossio antigo, antes disso ainda tive de pôr a coisa a meu gosto, que portas castanhas escuras em casas pequenas está visto que não é grande aquisição estética. Felizmente, e porque tenho família e amigos (obrigado T., Sérgio, Alliette, Tó) a coisa compôs-se, de tal modo que o que falta, agora, são umas pentelhices inconfessáveis que têm que ver com a pintura dos rodapés e a remoção de tinta dos azulejos de 1850, um trabalho a fazer à noitinha, enquanto se ouve música ou se vê um filme pouco exigente.

Reparei que há um movimento por parte do Estado (não tive ainda forma (tempo) de perceber em extensão e profundidade, o que é) de afastamento da Escola inclusiva que foi o paradigma da última década no que diz respeito à educação dos alunos com necessidades educativas especiais. Compreendo que para muitas pessoas, este é um retrocesso inaceitável; há crianças dentro do espectro que podem perfeitamente continuar nas suas turmas de ensino regular, beneficiando com isso da atenção pedagógica que lhes é devida e fazendo, tanto quanto possível, um percurso escolar que não difere do da maioria. Mas se isto é verdade para algumas crianças (e seria importante quantificar, por alto, quantas crianças do espectro estão dentro deste grupo), para outras é precisamente o oposto: a insistência na inclusão acabava por prejudicar o aluno com necessidades especiais na mesma medida em que prejudicava o professor e turma onde o aluno estava inserido. Mormente por ser uma medida socializante, avulsa, sem consideração pelo real impacto da sua adopção nas estruturas que rege (estas medidas, igualitárias por decreto, brilham pela aura de modernidade que transmitem e que não encontra equivalência, em muitos casos, na realidade onde se inscreve, porque a realidade reage ao que é cegamente estipulado por decreto), nunca me foi particularmente apelativa. No caso específico do Gui, não vejo qualquer vantagem em que ele seja obrigado a frequentar uma turma do ensino regular. Pelo contrário: é uma criança com necessidades tão diferenciadas das dos outros que merece – e precisa – de qualquer coisa à sua medida, isto é, que atenda àquilo que ele tem para dar (a nível humano e “escolar”, no sentido lato) e àquilo que ele precisa para funcionar diariamente.

Quando penso no futuro escolar do Gui, não é numa sala de aula a fazer um teste de inglês que o vejo. Surge-me antes numa sala muito semelhante à sala de ensino estruturado que ele frequenta agora, adaptada à sua idade, com outros miúdos como ele a fazerem desenhos e legos nos intervalos de aprender a abotoar correctamente uma camisa. Claro que gostava de estar enganado e que a realidade ultrapassasse esta ficção que criei para ocupar a linha do tempo, mas tenho a sensação de que não andarei tão longe disso como gostaria. Sendo que é verdade que cada caso é um caso, quantas crianças beneficiam de acompanhar a maioria na sala de aulas e quantas beneficiam de uma aproximação diferenciada? E não se pode ter os dois sistemas?

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um churrasco catita

 

Numa altura em que tudo cheira ao mofo do pessimismo instalado por via da desconfiança no futuro que se vive um pouco por todo lado, é reconfortante testemunhar a dedicação e vontade que ainda subsistem na promoção e organização de um evento (sim, porque apesar da modéstia do anfitrião, juntar mais de meia centena de pessoas, de Norte a Sul do país, é amplamente significativo) destinado, sobretudo, aos mais frágeis de entre nós.

Fomos até perto de Torres Novas, eu, a minha irmã e o Gui, para participar na patuscada anual que o Zé João organiza do ano passado para cá, sob o mote de “churrasco catita” e que visa proporcionar um espaço (magnífico, diga-se já) para que autistas e seus familiares possam conviver durante todo um dia sem se preocuparem com a reprovação alheia ou com a distância do sítio da brincadeira à estrada. Isto tudo na companhia de pessoas que partilham o mesmo grau de sensibilidade (por força do contacto próximo com a patologia, nas pessoas de familiares ou amigos) e que estão maioritariamente dessensibilizadas vis-à-vis os gritos, estereotipias e demais peculiaridades que compõem o multifacetado mundo do autismo.

Um sucesso. Reentramos no trabalho com o pé direito e despedimo-nos do Verão (versão férias) em excelente companhia; foi inclusivamente perfeito para estar ao vivo e a cores com pessoas cujo contacto não tinha ido para além das mensagens facebookianas. Quero voltar. Obrigado.

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ainda sobre as vacinas

Chegaram a mim dois artigos com diversos graus de interesse, sobre o problema das vacinas e da sua possível ligação à epidemia de autismo. Os dois artigos são eminentemente técnicos, pelo que qualquer leitor com alguma formação científico-biológica fica desde já convidado a apresentar um digest passível de ser digerido por miúdos de seis anos, que suprima o jargão técnico e o converta numa conversa capaz de ser mantida à mesa de café.

O primeiro artigo interessará mais àqueles que procuram uma ligação explícita entre o thimerosal (o conservante à base de mercúrio usado até há algum tempo nas vacinas) e a mitocôndria celular, nomeadamente no que diz respeito aos efeitos que o primeiro pode ter na segunda.

O segundo artigo, mais “polémico”, por natureza, é um estudo piloto – pelo que as suas conclusões não podem ser, a priori, generalizadas – e reproduz em macacos rhesus um plano de vacinação convencional, para perceber se entre o grupo de macacos vacinados e os restantes se podem encontrar diferenças que apontem para traços do espectro do autismo.

Estes dois estudos vêm de certa forma interromper a tese mediatizada segundo a qual as vacinas não trazem qualquer malefício associado ao seu uso. As farmacêuticas vão ter de rever as suas posições e financiar estudos que desacreditem estes. É ping-pong académico, porque o que está em jogo, para além da possibilidade de admissão de culpa (mesmo que involuntária) é a atribuição de tantos e tantos milhões em compensações indemnizatórias, um pouco por todo o mundo, que até uma farmacêutica (por norma de bolsos Linda Lovelacianos) pode tremer ou cair. A gente só quer a verdade, como sempre. Para saber o que aconteceu, em quem confiar, e o que não pode voltar a acontecer.

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o idiota de serviço do mês de Julho

 

Tenho sempre alguma dificuldade em explicar às pessoas que entregaram o cuidado das suas educações e cultura à televisão o que é “a droga”. Estas abençoadas criaturas não percebem que existe uma gradação de cinzento ao longo do espectro “droga” que faz com que alguns dos conhecidos delas possam ser consumidores de cannabis ou coca fim-de-semanal sem que eles nunca se apercebam. Para eles, “droga” é uma entrada no dicionário ilustrado com a imagem de um agarrado na amanha de carros. Não existe intermédio, charros, cogumelos, ácidos, drunfos, speeds e coca, etc. Só existe heroína e metadona, que deve ser uma heroína mais fraquinha que lá lhes dão para impedi-los de nos arrancarem os olhos no paroxismo da ressaca.

A mesma coisa se deve passar com este senhor, que adivinhou precocemente que o atirador do Colorado devia ser autista. Há gente que devia ir à feira do gado comprar um cérebro tão cedo quanto possível.

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o autismo é a cor deste Verão.

 

Estamos na moda. Inequivocamente. Passamos de ser um assunto pouco sexy para as televisões generalistas para um fenómeno gerador de crescente interesse e popularidade. O Autismo é a cor deste Verão.

Como é óbvio, isto são coisas que têm a duração e consistência de uma onda. É aproveitar a boleia e curtir, tanto quanto possível, o pico da onda antes da rebentação. Quando os media se fartarem (porque a cultura democrático-pop exige novidade e mudança, e exige-o rapidamente) voltamos a ser as criaturas que éramos antes, se não tivermos conseguido passar uma mensagem pela qual a amplificação mediática possa ter ajudado a produzir modificações duradouras na sociedade.

Do que tenho visto, há coisas boas a salientar. Algumas associações têm promovido os seus métodos sem perderem o foco que é a descrição do problema, a etiologia do espectro do autismo que, por muito que se fale nela, fica sempre aquém nos programas cujo ADN implica uma fulanização do entrevistado com vista a promover uma empatia rápida e fácil. Lamento que outras participações televisas se tenham deixado levar pelo engodo do relato biográfico, visto que este reduz o problema ao sujeito e impede que as pessoas leigas na matéria se interessem mais pelo autismo, pois o que fica saliente e é posto sob o foco do interesse é a vida de uma pessoa com um problema que calha a ser o autismo mas que, bem vistas as coisas podia ser outro qualquer. É importante despersonalizar as entrevistas, generalizar o complexo de sofrimento e de dificuldades acrescidas e salientar o facto de haver mais pessoas nesta situação – e cada vez mais pessoas, porque o aparecimento de novos casos de PEAs tem vindo a sofrer um crescimento de tipo exponencial – e de sermos, no fundo, um grupo cujas dificuldades muito próprias exigem uma compreensão social e uma resposta adequada por parte de Estado, sociedade civil e instituições.

As modas passam, nós ficamos e temos de gerir o que conseguimos criar no pico da onda.

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o paranóico

 

Sou amigo de muitos pais de crianças autistas no Facebook. Amigo virtual, entenda-se. Nesta nova modalidade de estar acompanhado na vida, as pessoas vão substituindo a voz pelo teclado e as expressões faciais pelos emoticons. A coisa resulta, porque somos tremendamente adaptáveis.

Tenho visto que muitos dos meus amigos, recentes e mais antigos, publicam quantidades enormes de fotografias dos seus filhos, para gáudio de quem gosta de ver crianças felizes, especialmente crianças a quem, muitas vezes, não se pode dar mais do que as condições para a felicidade, porque tudo o resto (educação, escolaridade, etc) está severamente condicionado pelo autismo. É bom ver que a felicidade é transversal à escala de competências.

Preocupa-me uma coisa, no entanto, e isso prende-se porventura com o meu lado mais desconfiado: a exposição das crianças nas redes sociais onde, virtualmente, qualquer um pode assumir qualquer identidade. No Facebook pode se ser várias personas, todas elas suportadas por colecções de fotos alheias pelas quais se atestam as identidades fictícias. Por isso preocupo-me com a história das fotos, com a possibilidade de elas poderem servir de mapa ou pista para alguém que me queira atingir ou magoar o meu filho. Como o Gui não fala, não saberia relatar uma experiência de rapto ou violência. E obviamente, mesmo sabendo de antemão que não sou ninguém para alguém se preocupar comigo, e que sou menos que ninguém para qualquer inimigo que possa ter, não quero facilitar, pelo que não ponho fotos dele em parte alguma. Fico mais descansado se as pessoas só tiverem acesso às minhas fotografias e à minha cronologia de actos disparatados. E fico preocupado por haver nesse facebook fora tantas crianças demasiado identificadas porventura à mercê de quem queira, estudando fotos, contextos e localidades (só os pensamentos são privados e nem isso se garante eterno) fazer mal a alguém. Porque os nossos são os indefesos dos indefesos.

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