o mel

 

O meu filho é um santo. Não preciso que me o digam (ainda que insistam em fazê-lo, normalmente no momento seguinte ao encontro da cristaleira com um joazinho qualquer hipervitaminado). Desde bebé de colo que sentimos o privilégio do silêncio e da bonomia do petiz. Os raros momentos em que ele, muito bebé ainda, resolvia ensaiar, de rompante, um falsete inesperado, eram prontamente resolvidos pela saciedade de uma necessidade qualquer do corpo. Se o Guilherme chorava, era porque tinha fome, sede, sono ou carências afectivas.
A história do bebé fácil tornou-se com o passar do tempo uma espécie de vantagem em desuso. O impulso comunicativo de onde provem o choro e a birra e que, com o passar do tempo, vai assumindo as formas elaboradas da palavra e do gesto era e continua, no Guilherme, muito limitado. Aos poucos a dádiva do pacifismo foi dando lugar à desconfiança do inanismo e é escusado dizer que a louvada tranquilidade foi um dos sinais que nos levaram a consultar algumas das sumidades pediátricas deste país
(às vezes penso que este Portugal é uma espécie de Cuba clandestina, horto generoso dos mais diversos e reputados clínicos mundiais, à força dos encómios que arrancam uns dos outros e da população em geral)
Passados quase dois anos sobre o diagnóstico oficial, o Guilherme, não sendo propriamente uma criança em permanente desassossego, também já não é facilmente confundido com uma estatueta ou com o cenário. O Guilherme de hoje é muito mais assertivo – ainda que muito menos que o desejável – e sabe, sobretudo, o que não quer. E o Guilherme não quer mel. Apesar de os pais, no posto de comando e com anos de experiência em operações estratégicas anti-virais, se manifestarem em uníssono a favor do mel e das suas propriedades apaziguadoras, o Guilherme decidiu que mel, nem vê-lo ou que, a vê-lo, ao longe, sobretudo da boca.
A minha noite e a minha semana acabam num tira-teimas trágico, onde pai e filho e mel e tosse se confundem, a gata à porta da casa-de-banho a desconfiar que lhe sovam o petiz , numa aflição de miados e a mãe sentada, de costas para a parede, a pedir-me calma numa paciência de pavio curto.
Quando saimos os dois da casa-de-banho (ele ganhou) estamos cansados, tristes e pegajosos. A mãe insiste que até as crianças normais transformam os paliativos de rotina em derivados de cenários de guerra, com direito a copiosa choradeira, remorsos e acusações mútuas de culpa. Eu anuo. E nem me importava de passar o resto da noite a descolar-me dos lençóis num sofrimento silenciado de larva se na verdade ele fosse também adquirindo, como as crianças normais, o hábito de falar.

 

Pai.

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